COMPLEMENTO C3 E C4 COMO IMPORTANTES BIOMARCADORES NO DIAGNÓSTICO DE DOENÇAS AUTOIMUNES E INFLAMATÓRIAS
COMPLEMENTO C3 E C4 COMO IMPORTANTES BIOMARCADORES NO DIAGNÓSTICO DE DOENÇAS AUTOIMUNES E INFLAMATÓRIAS
O sistema complemento desempenha papel central na imunidade inata e na modulação da resposta imune adaptativa. As proteínas séricas C3 e C4 são medidas rotineiramente em serviços clínicos e laboratoriais como marcadores indiretos de ativação do complemento e consumo por formação de complexos imunes. Estas concentrações têm utilidade diagnóstica e prognóstica em várias doenças autoimunes, especialmente em lúpus eritematoso sistêmico (LES), e em algumas vasculites e doenças renais. Este artigo revisa mecanismos, evidências sobre a utilidade de C3/C4 como biomarcadores, suas limitações (incluindo causas não autoimunes de alteração) e perspectivas de biomarcadores complementares (p. ex. fragmentos de ativação), com base em literatura clássica e publicações recentes.
O complemento é uma cascata proteolítica composta por dezenas de proteínas plasmáticas que se activa por três vias principais (clássica, alternativa e lectina). C4 integra a via clássica/lectina como componente inicial do “braço clássico”, enquanto C3 é o ponto de convergência central da cascata; a clivagem de C3 gera opsoninas (C3b) e fragmentos anafilatoxinas que promovem inflamação. Portanto, alterações séricas de C4 e C3 refletem tanto deficiência genética quanto consumo por ativação imune/complexos imunes.
A dosagem de C3 e C4 tem papel fundamental no contexto das doenças autoimunes, especialmente naquelas mediadas por imunocomplexos, como LES. Nessas condições, ocorre ativação frequente da via clássica do complemento, resultando em consumo progressivo de C4 e, subsequentemente, de C3. Essa redução sérica reflete a formação e deposição de complexos imunes nos tecidos e sua remoção mediada pelo complemento. Em contrapartida, estímulos inflamatórios sistêmicos e infecções podem alterar os níveis de C3 de maneira inespecífica, levando à elevação ou à redução transitória. Assim, a interpretação do perfil global, com C3 isoladamente baixo ou ambos C3 e C4 reduzidos, fornece informações mecanísticas importantes sobre a via ativada e a natureza da resposta imune.
Além do valor diagnóstico, a mensuração de C3 e C4 é amplamente utilizada no monitoramento da atividade de doenças autoimunes, sobretudo no LES. Reduções persistentes ou recorrentes desses componentes indicam consumo ativo e, consequentemente, atividade inflamatória aumentada. Diversos estudos clínicos demonstram correlação entre hipocomplementemia e atividade renal, particularmente na nefropatia lúpica, bem como associação entre a normalização dos níveis e a remissão da doença. Essa relação consistente confere a C3 e C4 o status de marcadores laboratoriais consolidados na prática reumatológica moderna.
Evidência clínica: principais doenças em que C3/C4 têm valor
- Lúpus eritematoso sistêmico (LES)
- Papel diagnóstico e de monitoramento: Cerca de até 50% dos pacientes com LES apresentam hipocomplementemia em fases ativas; níveis baixos de C4 (e em seguida C3) são clássicos em flares mediados por imunocomplexos. A deficiência congênita de componentes upstream da via clássica (p. ex. C1q, C4) está associada a risco aumentado de LES, reforçando o vínculo causal entre complemento e tolerância imunológica. Assim, a mensuração seriada de C3/C4 é empregada para rastrear atividade clínica e risco de manifestações renais. PMC+1 (declaração de carga conceitual importantes — Walport 2002; revisões subsequentes).
- Vasculites e glomerulonefrites
- Microscópica poliangiite e outras vasculites ANCA-associadas: Estudos recentes indicam que níveis de C4 (e C3) podem ter utilidade prognóstica em determinadas vasculites; por exemplo, redução de C4 tem sido associada a maior risco de progressão renal em poliangiite microscópica em coortes recentes. Entretanto, o padrão varia conforme a patogênese e a via do complemento envolvida.
- Artrite reumatoide (AR) e doenças inflamatórias crônicas
- Em AR, a ativação do complemento contribui para a patogênese local da sinovite; contudo, alterações séricas de C3/C4 têm valor diagnóstico limitado devido à natureza crônica e às influências sistêmicas/infecciosas. Alguns estudos sobre tratamentos biológicos (p. ex. tocilizumabe) demonstraram alterações nos níveis séricos de complemento, o que reforça interações terapêuticas-complementares, mas o uso rotineiro de C3/C4 como biomarcador de atividade em AR é menos estabelecido que em LES.
- Doenças por deficiência de complemento e susceptibilidade a infecções
- Deficiências congênitas (p. ex. C4) levam a susceptibilidade a infecções e a fenótipos autoimunes (LES em jovens). A diferenciação entre hipocomplementemia por consumo (doença ativa) e por deficiência primária é clinicamente relevante.
A interpretação dos níveis de C3 e C4 exige análise integrada e contextualizada. Um valor isolado, por si só, possui utilidade limitada; a observação dos padrões e da evolução temporal fornece dados mais relevantes. Por exemplo, a presença de C4 baixo com C3 inicialmente normal sugere ativação precoce da via clássica, enquanto a redução concomitante de ambos indica consumo mais avançado. A avaliação seriada, acompanhando a tendência durante surtos (“flares”), é mais informativa do que medições únicas.
Adicionalmente, múltiplas causas não autoimunes podem alterar as concentrações séricas desses componentes. Infecções bacterianas ou virais, hepatopatias, uso de certos fármacos (como imunossupressores e anti-inflamatórios) e estados inflamatórios sistêmicos agudos interferem no metabolismo do complemento, elevando ou reduzindo seus níveis. Assim, é essencial correlacionar os resultados laboratoriais com o quadro clínico e com outros biomarcadores específicos, como anti-dsDNA no LES, ANCA nas vasculites ou proteína C reativa (PCR) e velocidade de hemossedimentação (VHS) para processos inflamatórios gerais.
Por fim, há limitações analíticas inerentes às metodologias de mensuração. Diferentes técnicas, como imunoprecipitação, nefelometria e métodos automatizados — podem gerar variações nos resultados entre laboratórios. Portanto, é mais adequado acompanhar valores individuais e suas tendências ao longo do tempo, em vez de comparações pontuais a intervalos de referência fixos.
Estudos recentes têm destacado o potencial diagnóstico e prognóstico de biomarcadores derivados da ativação do complemento, além das proteínas intactas C3 e C4. Fragmentos de clivagem como C3a, iC3b, C3d e C4d refletem de forma mais direta a ativação em tempo real da cascata, apresentando sensibilidade e especificidade superiores à dosagem isolada de proteínas totais. Revisões sistemáticas apontam que a combinação de C3/C4 com seus produtos de clivagem pode aprimorar a detecção precoce da atividade do LES e de outras doenças mediadas por imunocomplexos.
Outro parâmetro em investigação é a razão C3/C4. Pesquisas exploratórias demonstram que essa relação pode auxiliar na diferenciação de fenótipos clínicos, especialmente em desordens neuroimunológicas, como a distinção entre neuromielite óptica e esclerose múltipla. Embora promissora, essa abordagem ainda requer validação multicêntrica e padronização antes de aplicação rotineira.
Publicações desde 2016 até 2025 têm reforçado (i) o papel clássico de C3/C4 em LES, (ii) a utilidade prospectiva em determinadas vasculites e (iii) a necessidade de medir produtos de ativação para maior sensibilidade. Revisões de 2021–2024 sintetizam que C3/C4 permanecem biomarcadores de primeira linha por disponibilidade e custo, mas que a utilização otimizada exige painéis complementares e interpretação clínica experiente. Estudos muito recentes (2023–2025) descrevem associações prognósticas específicas (p. ex. C4 e progressão para doença renal terminal em vasculites) e novas abordagens “omic” integrando complemento a painéis proteômicos.
Diante do conjunto de evidências, recomenda-se que em pacientes com LES a dosagem seriada de C3 e C4 seja parte integrante do monitoramento da atividade de doença, sempre correlacionando com achados clínicos e autoanticorpos específicos, como o anti-dsDNA. Em vasculites e glomerulonefrites, os níveis séricos desses componentes devem ser considerados tanto para avaliar a atividade inflamatória quanto para prever o prognóstico renal, idealmente em conjunto com achados histológicos de biópsia.
É igualmente importante reconhecer as limitações inerentes a esses testes e interpretar variações em contexto clínico, levando em conta fatores como infecções intercorrentes, hepatopatias e efeitos farmacológicos. Quando disponível, recomenda-se complementar a análise com a quantificação de produtos de clivagem, como C3d, C3a e C4d, bem como com testes funcionais globais do sistema complemento (CH50 e AH50), a fim de distinguir consumo ativo de deficiência primária.
Referências:
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